Para onde olham nossos olhos

Arthur Bispo do Rosário :: Manto da Apresentação :: sem data

 

Presume-se que Arthur Bispo do Rosário tenha vivido por cerca de oitenta  anos – não se sabe exatamente o ano de seu nascimento. Desses, cinquenta foram vividos como interno da Colônia Juliano Moreira, antigo manicômio carioca, sendo vinte e cinco ininterruptamente, até sua morte em 1989.

 

Negro, neto de escravos, pobre e migrante, tentou sobreviver no Rio de Janeiro como servente, caseiro, porteiro de edifício, funcionário da antiga Light e segurança de políticos, até ser sentenciado como ‘louco do tipo esquizofrênico paranóico’. Em um contexto marcado pela ascensão do fascismo – inclusive no Brasil, onde a então atuante Liga Brasileira de Higiene Mental adotava uma política higienista, racista e xenófoba –, foi submetido a lobotomia, eletrochoques e castigos por uma psiquiatria que tratava de mutilar e excluir os que incomodavam a ordem reinante.

 

Sua obra veio a conhecimento público, em seu conjunto, apenas após sua morte – e o que se viu foi um legado artístico extremamente original, pautado por uma profunda criatividade temática e pelo uso de diversos materiais e formas, trazendo à luz uma vida até então desconhecida e cujo entendimento passa pela arte, e não pela loucura.

 

Apropriando-se conscientemente de seu exílio como forma de viabilizar sua autoexpressão, Bispo do Rosário transformou em arte todo e qualquer recurso material que teve à mão, demonstrando de maneira incontestável a capacidade inata que tem o homem de criar – a despeito de dificuldades técnicas, materiais, de conhecimento teórico ou de história pessoal. Pelas mãos do artista, garrafas, pentes, moedas, sapatos, canecas, colheres, vassouras, pedaços de tecidos (tirados de lençóis), linhas (para bordar, proveniente do desmanche de uniformes dos internos), deixavam sua função original para se tornarem veículos de sua obsessiva busca por ordenamento, estrutura e ritmo do tempo e do pensamento.

 

Nas palavras de Louise Bourgeois, ‘Bispo do Rosário tinha a capacidade de incorporar um objeto de sua vida de confinamento e transformá-lo num objeto simbólico de sua auto-expressão, mistério, beleza e liberdade’. Deparar-se com qualquer desses objetos é uma experiência invariavelmente carregada de grande emoção, pois não bastasse sua desconcertante beleza plástica, neles reconhecemos formas, palavras e significados que dialogam silenciosamente com a alma humana, despertando sentimentos universais e questionamentos existenciais.

 

Questionamentos, sim. Pois ao olhar para dentro de si, ouvir sua própria alma e se permitir dar vazão à sua essência criativa mesmo frente a imensas adversidades, Bispo do Rosário produziu beleza e colocou-se num lugar da História que a psiquiatria jamais alcançará. E então nos perguntamos para onde estão voltados nossos olhos, para o que estão atentos nossos ouvidos e por que, mesmo quando não há qualquer adversidade, tanto relutamos em deixar brotar a essência criativa que cada um de nós traz, de forma única e singular, dentro de si.

 

P.S.Em 1982, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – http://www.rioecultura.com.br/instituicao/instituicao.asp?local_cod=119

 

Em 2007, a CosacNaify publicou o belíssimo livro ‘Arthur Bispo do Rosário – Século XX’, organizado por Wilson Lázaro, com textos de Emanuel Araújo, Louise Bourgeois, Paulo

 

Herkenhoff e Ricardo Aquino, e atualmente fora de catálogo.

À mesa

Henri Matisse :: La Desserte (Harmonie Rouge) :: 1908 :: ©hermitagemuseum.org

 

O ser humano talvez já nem se lembre de que o vestir teve, um dia, um significado apenas funcional em sua vida – proteger o corpo das intempéries. Passado esse primeiro e longínquo momento, no decorrer dos séculos o vestir foi incorporando outras significações – sociais, religiosas, ou mesmo ideológicas e políticas – até se tornar, como é hoje em dia, um ato carregado de códigos, rituais e cuidados.

 

Em relação ao comer, a história não difere muito – se o alimento teve, um dia, função apenas de garantir sobrevivência ao ser humano, com o passar do tempo ganhou desdobramentos e, permeado por questões econômicas, sociais, religiosas ou geográficas, o alimentar-se também adquiriu seus códigos, rituais e cuidados.

 

Ao olharmos essa evolução de modos e costumes, podemos ainda observar um outro aspecto, mais sutil e não menos relevante: a necessidade do ser humano de conferir maior prazer a atos que, por essenciais à sua própria existência, lhe são obrigatórios. À medida que o homem adquiriu consciência de sua própria existência e percepção de seus gostos e prazeres, não lhe foi mais possível suportar a infinita repetição, mecânica e cotidiana, de afazeres que não propiciassem conforto também à sua alma. Ampliar o sentido desses afazeres tornou-se necessidade imperiosa.

 

A quaisquer atos e realizações do ser humano, bem como às diversas maneiras de nos relacionarmos com eles e entre nós mesmos, podemos conferir beleza e, por decorrência, propiciarmo-nos prazer. Na introdução de seu livro ‘A beleza salvará o mundo’ (Ed. Difel, 2011), o filósofo Tzvetan Todorov explica que a beleza, seja a de uma paisagem, a de um encontro ou a de uma obra de arte, não remete a algo para além dessas coisas, mas nos faz apreciá-las enquanto tais – e, assim, nos permite experimentar a sensação de habitar plena e exclusivamente o presente.

 

Estar à mesa para desfrutar de uma refeição é uma das mais frequentes e ricas oportunidades que temos de experimentar tal sensação – e é espantoso ver quantas pessoas a desperdiçam diariamente, se relacionando com o alimentar-se como o faziam aqueles nossos ancestrais.

 

À mesa, a forma dos objetos dispostos, o paladar de um certo alimento, o encontro com o outro, ou o encontro consigo mesmo, tudo são possibilidades de desfrutarmos dessa plenitude – no dizer de Todorov, ‘sensação fulgaz e ao mesmo tempo infinitamente desejável, pois graças a ela nossa existência não decorre em vão; graças a esses momentos preciosos, ela se torna mais bela e mais rica de sentidos.’

 

Sejamos, pois, atentos e generosos conosco mesmos, lembrando diariamente que cada refeição representa uma chance de nos encontrarmos com o belo, de conferir prazer a nós mesmos e, assim, de ampliar o sentido de nossa existência.

A alma imoral

Clarice Niskier em A alma imoral :: photo Dalton Valério

 

‘Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Esse olhar é o da alma.’

 

‘A alma imoral’ é uma das mais belas e impactantes peças de teatro dos últimos anos – uma adaptação teatral elaborada e interpretada (de forma elegante e sensível) por Clarice Niskier, a partir do livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Partindo do conceito de que, por sua própria essência, a alma humana é transgressora, o texto confunde, desconstrói e reconstrói visões milenares sobre o que sejam corpo e alma, certo e errado, obediência e desobediência, traído e traidor.

 

Bonder coloca a tomada de consciência do ser humano sobre sua própria existência como a origem do corpo moral, que passa a ser o guardião dos costumes, da conformidade e da adaptação – o mantenedor das tradições do passado, que por meio delas colabora para a reprodução da espécie. Já a alma – que carrega em si a rebeldia e a capacidade da mutação – é aquela que possibilita pensamentos e condutas que rompem com essa moral estabelecida, colaborando assim para evolução dessa espécie. Para ele, é a tensão gerada por essas duas naturezas conflitantes e interdependentes, e o diálogo que se constrói entre essas forças – a conservadora e a transgressora – que permite ao homem transcender a si mesmo.

 

‘Não há tradição sem traição. E não há traição sem tradição.’ Basta olhar para a história da humanidade para constatarmos, nas mais diversas formas da expressão humana, a beleza e a verdade dessa afirmação: de Michelangelo a Picasso, de Beethoven a Stockhausen, de Isadora Duncan a Pina Bausch, de Brunelleschi a Frank Gehry, de Shakespeare a Guimarães Rosa… a evolução humana depende fundamentalmente de atos que, pela ótica dos costumes e da tradição, são vistos como traições. Mas verdadeira traição seria não dar voz a nossas almas transgressoras, pois são elas que nos permitem o prazer e a evolução em nossa existência.

 

Sobre a peça: www.almaimoral.com

 

‘A alma imoral’, Nilton Bonder, 1998, Ed. Rocco.

 

 

Por que Chanel

Coco Chanel :: ©Chanel.com

 

Quase 100 anos após suas primeiras criações, Chanel ainda é reverenciada no mundo da moda – e também fora dele. Numa era em que produtos, pensamentos e relações são cada vez mais efêmeros, há de se pensar sobre o porquê dessa longa permanência.

 

Libertando a mulher dos trajes rígidos do final do século XIX (que privilegiavam a ostentação em detrimento do conforto), Chanel reproduziu, em escala industrial, sua própria imagem – uma imagem diferenciada, em absoluta sintonia com sua personalidade e com o momento histórico em que vivia. E nisso reside o segredo de sua permanência no imaginário coletivo por todo esse tempo: não somos fascinados por suas roupas, seus colares ou seu perfume – somos fascinados por sua identidade, tão forte quanto única, e que nos é revelada por meio dos objetos que usou e (re)produziu.

 

Dizem que a intensidade da presença de Chanel anulava a de suas rivais. Mas sem dúvida  tal fascínio não vinha dos objetos que escolhia para seu vestir… esses eram escolhas pessoais e conscientes, decorrentes da intensidade de seu pensar – e do entendimento de que, também pelo vestir, expressava a própria identidade.

 

Ironicamente, a produção industrial de um estilo pessoal e único tornou-se um paradoxo – a ponto de a própria Chanel, a certa altura, ter afirmado: ‘Já não sou o que era: devo ser o que me tornei.’ A ânsia por uma imagem socialmente reconhecida e valorizada, aliada à falta de conhecimento e de reflexão sobre si mesmo, faz hoje com que milhares de pessoas creditem a bolsas, sapatos e roupas a capacidade de lhes conferir personalidade e identidade, numa total inversão de papéis.

 

Como já escrevi no texto ‘Do vestir’ (jan, 2011), o belo está em sermos e sabermo-nos únicos. Belo, portanto, não é ter Chanel – belo é ser Chanel.

As brasas

J. M. W. Turner :: Vesuvius in Eruption :: 1817-1820 ::

 

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice.’

 

Esse pequeno trecho do livro ‘As brasas’, de Sandór Márai, é tocante pela precisão e pela sensibilidade com que relaciona a perda dos prazeres da alma ao envelhecimento e à morte. Na obra, dois homens, amigos inseparáveis na infância e na juventude, reencontram-se depois de terem passado quarenta anos distantes. Desse encontro nasce um duelo de palavras que abrem feridas e expõem dores que, como brasas na lareira, ainda ardem – mesmo parecendo extintas.

 

Romancista, poeta e cronista, Sandór Márai nasceu em na virada do século XX em uma pequena cidade da Hungria e é considerado um dos maiores escritores de seu idioma. Com mais de sessenta livros  publicados, foi reverenciado em seu país no início da carreira mas viu sua obra ser proibida após a II Guerra Mundial, com a instauração do regime comunista. Autoexilado a partir de 1948, morou na Suíça, na Itália e na França até fixar residência nos Estados Unidos onde, aos 89 anos de idade, cometeu suicídio – talvez a maior prova do valor que sempre deu à liberdade de pensamento. Seus escritos, potentes e extremamente cuidadosos na linguagem, com frequência retratam a decadência da burguesia em seu país, com olhar voltado para as grandes questões emocionais – e universais – do homem: amor, paixão, vida, dor, decadência e morte.

 

São de sua autoria também os excelentes ‘De verdade’, ‘Divórcio em Buda’, ‘Rebeldes’ e ‘Libertação’ – como ‘As Brasas’, todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras.