Sem sapatos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma das imagens mais associadas à ideia de liberdade é a imagem de alguém descalço. Além de parecer uma certa forma de irreverência e não-obediência a padrões estabelecidos, caminhar sem sapatos é, de fato, um ato capaz de proporcionar prazerosas sensações de bem-estar físico, conforto e relaxamento. De científicas a místicas, as explicações são inúmeras.

 

Nossos pés são estruturas complexas e repletas de terminações nervosas que se conectam, por meio de ramificações, a diversos órgãos do corpo, à coluna vertebral, à cabeça e aos membros superiores e inferiores. A prática de cuidar do corpo pelo ato de tocar e estimular essas terminações tem o nome de reflexologia e vem sendo utilizada nas culturas orientais há milhares de anos.

 

Caminhar sem sapatos, especialmente sobre superfícies irregulares (areia, pequenas pedras, grama), nos faz massagear diferentes pontos do pé e estimular diferentes partes do corpo, favorecendo o bom funcionamento do organismo e estimulando a capacidade de concentração, a coordenação motora, a mobilidade e o equilíbrio.

 

Outros dizem que, ao pisarmos sobre solo úmido com pés descalços, descarregamos na terra o excesso de eletricidade estática corporal acumulada, obtendo dessa forma a sensação de relaxamento.

 

Já os mais místicos dizem que ao caminhar descalços aumentamos o fluxo de nossa energia vital (ou nosso Chi, Qi, Prana, Baraka ou Orenda, entre outros sinônimos), pelo contato direto que estabelecemos com a Terra, uma de suas fontes naturais – e o prazer que sentimos viria justamente do restabelecimento dessa conexão com o universo natural a que pertencemos.

 

Discutir e investigar as fontes de nossos prazeres é, muitas vezes, apenas saber identificar essas fontes, para assim podermos ampliar o espaço que elas ocupam em nossas vidas. Nem sempre importam suas origens ou a decodificação de seus processos… importa estarmos atentos às suas manifestações, garantindo que continuem vivas e presentes em nosso cotidiano.

As brasas

J. M. W. Turner :: Vesuvius in Eruption :: 1817-1820 ::

 

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice.’

 

Esse pequeno trecho do livro ‘As brasas’, de Sandór Márai, é tocante pela precisão e pela sensibilidade com que relaciona a perda dos prazeres da alma ao envelhecimento e à morte. Na obra, dois homens, amigos inseparáveis na infância e na juventude, reencontram-se depois de terem passado quarenta anos distantes. Desse encontro nasce um duelo de palavras que abrem feridas e expõem dores que, como brasas na lareira, ainda ardem – mesmo parecendo extintas.

 

Romancista, poeta e cronista, Sandór Márai nasceu em na virada do século XX em uma pequena cidade da Hungria e é considerado um dos maiores escritores de seu idioma. Com mais de sessenta livros  publicados, foi reverenciado em seu país no início da carreira mas viu sua obra ser proibida após a II Guerra Mundial, com a instauração do regime comunista. Autoexilado a partir de 1948, morou na Suíça, na Itália e na França até fixar residência nos Estados Unidos onde, aos 89 anos de idade, cometeu suicídio – talvez a maior prova do valor que sempre deu à liberdade de pensamento. Seus escritos, potentes e extremamente cuidadosos na linguagem, com frequência retratam a decadência da burguesia em seu país, com olhar voltado para as grandes questões emocionais – e universais – do homem: amor, paixão, vida, dor, decadência e morte.

 

São de sua autoria também os excelentes ‘De verdade’, ‘Divórcio em Buda’, ‘Rebeldes’ e ‘Libertação’ – como ‘As Brasas’, todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras.

Luz e alma

Coral Lamp :: ©davidtrubridge.com

 

A luminária Coral, criada pelo designer neozelandês David Trubridge, foi lançada em meados dos anos 2000. Na primeira vez que a vi, estava instalada em um ambiente intimista ao fundo de uma conhecida loja de decoração no Soho, em NYC, e o efeito de luz e sombras criado por seus cheios e vazios era arrebatador. Impactada pelo contraponto que parecia existir na essência daquele objeto, me perguntava como seria possível obter um resultado tão delicado e orgânico a partir da montagem de um quebra-cabeças cujas peças são todas idênticas, racionalmente projetadas e industrialmente (re)produzidas.

 

Graduado em arquitetura naval na Inglaterra, na década de oitenta Trubridge morou em um barco por 5 anos, navegando ao redor do mundo. A experiência o levou ao desenho e à produção de mobiliário (inicialmente para embarcações), e o que começou de maneira despretensiosa como um pequeno negócio de caráter artesanal já em meados dos anos noventa transformava-se em uma grande empresa de atuação global.

 

Acreditando na perenidade como atributo do bom design e na arte como propulsora do desenvolvimento humano, David Trubridge desenvolve projetos tendo como pilares a consciência ambiental, a simplicidade e a inovação, sempre buscando obter o máximo de efeito com o mínimo de material. Seus produtos são feitos de madeira proveniente de plantações de manejo sustentável da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, e todo processo produtivo é pensado para causar baixo impacto ambiental (substituindo, por exemplo, solventes químicos por óleos naturais). Guiado por um forte instinto de preservação ambiental, e apaixonado pelo mar e por viagens, é nas estruturas e formas presentes na natureza que o designer, até hoje, busca inspiração para cada novo desenho.

 

Conhecer essa história nos permite compreender melhor o impacto provocado pelas peças  criadas por Trubridge. Elas nos tocam não apenas por suas belas formas ou por seu efeito visual, mas principalmente por sua verdade. São peças que têm alma: seu resultado estético está assentado sobre uma ética, e isso é algo que, inconscientemente, conseguimos perceber. Como? A alma, quando existe nas coisas, conversa diretamente com nossa alma – e é nessa conversa que residem as razões do gosto e do prazer que somos capazes de sentir.

 

Para saber mais: www.davidtrubridge.com

O suficiente

Piet Mondrian :: Composition C :: 1935

 

O ser humano precisa aprender o significado da palavra “suficiente“. O que é suficiente para mim? O que me basta? Esta pergunta é fundamental, terrível, crítica.‘ A provocação, feita pelo antropólogo Roberto DaMatta em janeiro de 2011 durante uma entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, nunca foi tão atual.

 

Vivemos uma época em que quase não há espaço para reflexão, e determinadas maneiras de ser e ter são difundidas como verdades únicas: a roupa que se ‘deve’ usar, o carro que se ‘deve’ ter, a música que se ‘deve’ ouvir, o lugar para onde se ‘deve’ viajar… São inúmeros meios de comunicação, sites, bloggers e afins difundindo ‘verdades’ sem reflexão, questionamento e, muitas vezes, sem cultura ou repertório. Pior, muitos  compartilhando mediante remuneração produtos e serviços sem esclarecer a seu público a real motivação daquele compartilhamento.

 

Pelas ruas da cidade, cenas patéticas: acompanhadas de um séquito duvidoso, aspirantes a influencers trocam de roupas dentro de tendas improvisadas, posam para fotos usando peças que não lhes pertencem, em frente a lugares que não frequentam, fingindo uma vida que não vivem.

 

Não bastasse a imposição de padrões de consumo de bens materiais, há algo ainda mais nocivo: a imposição de padrões corporais. Leio sobre ritidoplastia, implantes de pômulo, bichectomia, preenchimentos, harmonização facial. Não faz muito tempo, me deparei com relatos de mulheres que ouviram de seus ginecologistas e de outros ‘profissonais de saúde’ que suas vaginas eram inadequadas e que deveriam ser modificadas. O número de pessoas que sofrem e se culpam por não conseguirem reproduzir um determinado corpo, rosto ou modo de vida cresce dia a dia. Baixa autoestima, endividamento, transtorno de personalidade, ansiedade, depressão, bulimia e anorexia são apenas algumas das consequências desse mecanismo.

 

De nada adianta perseguir modelos artificialmente criados. Tudo que se busca sem consciência acaba em angústia – seja pela impossibilidade da conquista, ou mesmo pela própria conquista. Afinal, quem se satisfaz ao conquistar o que não quer, ou o que imaginava querer mas, de fato, nem sabe por quê? Como no famoso conto ‘O espelho‘, de Machado de Assis, o processo de distanciamento de si mesmo é infinito e conduz ao extremo de não nos reconhecermos mais senão por meio da imagem construída por (e para) outros.

 

Não devemos jamais negar nossa própria essência. É em seu caráter único que está o valor de cada ser humano. Ter consciência de quem somos e do que nos é suficiente equivale a ter liberdade. Olhar para dentro de si e perceber qual a medida e qual a maneira daquilo que queremos ser, ter, usar, sentir ou ouvir, é a única forma de ampliar nossa sensação de plenitude e os prazeres que podemos, a cada dia, conferir à nossa própria existência.