A beleza da imperfeição

©Richard Avedon :: portrait of Marella Agnelli :: 1959

 

Ao longo da História ocidental, o conceito de Beleza sempre esteve associado à ideia da perfeição. Na Grécia Antiga, a definição do belo estava estruturalmente ligada às noções de ordem, simetria e clareza, e à presença de proporções definidas como harmônicas. Já na Idade Média, o Cristianismo deu uma dimensão simbólica à Beleza, ao interpretá-la como um atributo divino, tal qual a bondade e a verdade – nesse sentido, também ligada à ideia de perfeição. E embora com o Renascimento tenham surgido concepções relativistas, incorporando ao conceito de Beleza aspectos culturais e sócio-econômicos, foi apenas a partir do século XVII que a subjetividade passou a permear a noção do belo (fazendo emergir então a ideia de ‘gosto’).

 

Na segunda metade do século XVIII, as convulsões sociais na Europa criaram um ambiente propício para o renascimento dos ideais de Beleza da Grécia e Roma Antigas, amplamente utilizados nas imagens de divulgação da Revolução Francesa e do Império Napoleônico. E foi justamente nesse momento que surgiu Kant, o primeiro pensador a deslocar o centro de existência da Beleza do objeto para o sujeito. A divisão que Kant estabelece entre ‘juízo de conhecimento’ (o que emite conceitos baseados nas propriedades do objeto) e ‘juízo estético’ (decorrente da reação pessoal do contemplador diante do objeto) fincou as bases da estética contemporânea. O belo deixa de estar apenas naquilo que se vê, e passa a estar também nos olhos que vêem.

 

O pensamento kantiano abriu caminho para as grandes rupturas estéticas ocorridas entre o final do século XIX e início do século XX. Ao conceito do belo foram incorporadas as ideias de singularidade, individualidade, prazer, emoção, potência, coragem, vitalidade etc.. Pudemos entender que existe Beleza na perfeição, mas que não é preciso haver perfeição para que exista a Beleza. Aguçamos nossa capacidade de percepção e ampliamos a possibilidade de conferir prazer à nossa alma. Passamos a admirar a voz cristalina de Nat King Cole tanto quanto a voz insegura de Chet Baker; as proporções clássicas do rosto de Grace Kelly, e os traços exóticos e voluptuosos de Sophia Loren; a Beleza densa do trabalho de Raushenberg e a quase superficial da pop art de Warhol.

 

Passadas poucas décadas, no entanot, o caminho que parecia de liberdade curiosamente acabou nos conduzindo a um aprisionamento. Estimulada por uma indústria que, interdisciplinarmente, se estrutura na massificação e na hipervalorização da juventude para gerar lucros, a busca por um ideal de Beleza – a busca pela Beleza perfeita – nunca foi tão exacerbada quanto hoje. Num processo insano e sem fim, homens e mulheres se lançam numa jornada rumo àquilo que nada é senão uma construção imaginária coletiva. E ao abandonar sua própria Beleza para (tentar) chegar a outra, vivem eternamente insatisfeitos, vagando no meio desse caminho.

 

É preciso resgatar a riqueza da pluralidade e a Beleza que reside na imperfeição. Lembrar da estranheza de Dovima. Dos olhos de Serge Gainsbourg, dos dentes de Lauren Hutton. Da boca de Mick Jagger, das sobrancelhas de Frida Kahlo e das formas de Grace Jones. E lembrar sobretudo das palavras de Leonard Cohen, que em sua canção ‘Anthem’, de 1992, diz:

 

‘… Forget your perfect offering

There is a crack in everythin

That’s how the light gets in’

(Em livre tradução:

‘… Esqueça a perfeição

Em tudo há uma fresta

E é por ela que entra a luz’)